08 julho 2008

brancos

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... e todas as pinturas, recentes ou antigas, nítidas ou não, desbotam-se a cada tentativa de recordá-las ou de reconstituí-las. Somente algumas breves nuances de brancos não se apagam jamais.
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Ontem eu quis negar aquela beleza. Por onze, talvez doze minutos incompletos e interpretados. Uma dança de movimentos arranjados, que de tão mecanicamente repetidos convergem-se em superfícies de luzes divinas e sons seqüestrantes, absolutos e plenos. E fascinantes. E belos por excelência.
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Um forjado estado de surdez distanciou-me da sedução, da fusão cúmplice do casal de bailarinos naquele ato. A combinação inaudível de quatro mãos que se atraem porque são de um mesmo membro, de um mesmo corpo, de uma única fala – seja a minha pele. Abstraio meus sentidos e recrio os cabelos-pincéis daquele homem que retratava nossa relação em cores vivas. Nas pinturas, e nele, eu via o rubro dos meus pêlos por seus olhos. Seus pingos de suor deixaram-me sinais no rosto. Por muitas e muitas luas, sentia pernas aquecidas a se deslizarem úmidas, trançadas, inseparáveis. Sou sua pele.
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Amputaste meus dedos, não te toco mais.
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Um sussurro na platéia produz faíscas da dança leviana em meus ouvidos. Peço-lhes por favor, mantenham-se mudos e cerrados. Continuo na lembrança dos cheiros ruidosos desfazendo-se entre intervalos de uma respiração ofegante e soluços abatidos. Transpiro êxtase ao absorver aquele único orgasmo após o penúltimo. Pulsante e etéreo. Pulsante e eterno.
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No palco, feito fotografia em movimento, a sincronia do casal exibia a plenitude que ora eu repudiava. Dança, música e silêncio. Silêncio ofuscante para me reavivar nas pinturas de cores gastas. Não carrego mais o verde para retocar seus olhos. Procuro por toda a casa, por dentre as estantes, atrás das cômodas. Outras luas se vão e retoco-os com o pouco que me resta de tinta amarela. Antes que seus preciosos olhos se percam.
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Vejo-me refletida na íris amarelo-opaca, exausta do escárnio desta dança alheia cultuada por tantos outros, mas ainda assim, bela, belissimamente completa. Que a fortaleza desta composição escorra com a chuva que está por vir e estilhace-se em gotículas numa sarjeta qualquer. Água torrente, caia e anavalhe minhas pupilas pois as lágrimas já me faltam. Façam lâminas desta dança maldita, dolorosamente perfeita. Se os olhos não me choram, para que me serve a visão? Chuva, lave as poucas cores ainda nítidas das pinturas do passado. Desfoque minhas memórias, desbote-me a ausência deste homem, dissolva sua saliva no vento sul. Enfim, seque seu gozo, seu gosto, seu perfume, sua voz. Cesse suavemente nossa ária.
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(Somos vulneráveis. As condições inexplicáveis que se auto-explicam somente pelo tempo. Aquelas que se tornam desgastadas e por fim diluídas para convivermos juntas - as mesmas que não são compreendidas porque ainda enxergamos com os olhos de ontem.)
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Encerra-se a dança, restauro minha lucidez com os aplausos. Sim, deixem-me apenas entre os aplausos - os mais vigorosos, os perpétuos. São as matizes da minha arte. Os brancos que não se apagam jamais.
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