29 abril 2009

o lanche de amanhã

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Lembro que meu uniforme do jardim de infância era um avental laranja com um grande bolso em formato de fatia de melancia. Esse bolso era especial, repleto de cacos ressecados de massinhas de modelar, punhados de areia, tocos de giz de cera. Era a morada de famílias de tatu-bolas, que eu tentava levar para casa todos os dias – e minha mãe os expulsava antes de entrar no carro, lá mesmo no portão da escola. Bolso de roupa de criança carrega sempre uma surpresa. Com o Felipe não podia ser diferente.
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Ontem, depois da escola, passei na Arpoar. É uma loja de roupas que eu adoro e o Fê faz cara de tédio. Ele tem o gene do pai.
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- Ficou bonito esse casaco na mamãe?
- Vamu embora, mãe. Tô com fome.
- Que cor você acha mais legal... vermelho ou roxo?
- Azul.
- Azul? Onde você viu o azul?
- Anda logo mãe....
- Só um minutinho Fê...
- ....
- Esse é o último cabideiro prá ver, tá?
- ....
- Ai ai, vou levar esse aqui mesmo.
- .....
- E aquele ali, você gostou?
- Mãe.... vamu logo....
- Já tô pagando, já tô pagando.
- É débito ou crédito? – perguntou a moça simpática da loja.
- Débito, por favor.
- Mãe, olha o que eu achei.
- O que é isso? Parece casca de árvore.
- Quer uma mordida?
- Mordida? Você tá comendo isso, Fê?
- É gostoso, mãe.
- Onde você pegou isso?
- Tava no meu bolso.
- Mas o que é isso?
- É carne seca.
- Carne seca?
- O Rafa trouxe no lanche.
- No lanche?
- Pode digitar a senha – interrompeu a moça segurando a risada.
- Fê, isso não é comida de cachorro não?
- A gente trocou. Eu dei um brigadeiro do meu lanche e ele me deu a carne seca.
- Carne seca de lanche? Nunca vi isso.
- Pergunta pra mãe dele onde que ela comprou.
- Por quê?? Você também quer levar carne seca de lanche?
- Eu quero.
- Putz Fê... jura mesmo?
- Eu vou guardar esse pro lanche de amanhã.
- Esse qual?? Tem outra carne seca aí??
- Ué mãe.... é uma pra cada bolso...
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o pedaço para o lanche de amanhã

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23 abril 2009

mãos dadas

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Ela quer confiar no seu passo.
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Olhe para mim ao menos uma vez.
Você não cuida de mim. Não segura na minha mão.
Eu estava me afogando.
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Ela quer ser vista.
Ela quer amor, colo não basta, teoria não serve.
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Ela pede uma resposta.
- Calaboca! Eu não quero falar disso!
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Ela quer uma reação.
Ele a reconheceu.
Ela sorri.
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13 abril 2009

supertramp

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Nesses últimos dias eu li A Cabana, de William P. Young. Eu tenho dessas coisas. Leio best-sellers e depois fico me questionando porque gastei tempo com isso. Eu gosto (escondido) dessas coisas popularescas. Quis saber quem ganhou o Big Brother, mesmo sem saber quem era o fulano.

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Nesses últimos dias eu assisti Into the Wild, dirigido pelo Sean Penn. Eu tenho dessas coisas. Demoro para passar na locadora e depois fico me perguntado porque enrolei tanto para assistir esse filme. A trilha é do Eddie Vedder – só isso já me bastaria.
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A Cabana e Into the Wild falam da mesma coisa – angústia, busca, perdão e liberdade. Falam de amor sem rebarbas. Um é piegas, outro é poesia. Um é ficção, outro é suor. Um é narrativa, não literatura. O outro é esforço, vivência lapidada.


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Eu acredito em Deus.

Não naquele que eu vejo, mas naquele que eu sinto.

No que não se modela, porque simplesmente, já existe e está.
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imagem 1: divulgação A Cabana, William P. Young, ed. Sextante

imagens 2 e 3: divulgação Into the Wild.

imagem 4: Christopher McCandless, o Alexander Supertramp.

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09 abril 2009

uma mulher, duas meninas e quatro ovos

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Eu era a segunda pessoa na fila do caixa. Atrás de mim, uma mulher com a minha idade passava as moedas de uma mão para outra, feito areia na ampulheta. Era uma daquelas lojas do Largo de Pinheiros que vende doces por atacado. Fui comprar as lembranças de Páscoa para as professoras do Felipe.
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- Será que esse ovo é gostoso? – a mulher perguntou erguendo dois ovos de páscoa de uma marca desconhecida.
- Eu não conheço – respondi fazendo pouco caso.
- São para as minhas vizinhas.
- Sei.
- Duas meninas tão boazinhas. A mãe delas sumiu.
- Que coisa não?
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Conforme abria um espaço no balcão do caixa, eu ia colocando as embalagens de bombom Nestlé.
- Eu não sei direito, mas acho que ela foi morar com algum namorado. Largou as meninas sozinhas.
- São pequenas?
- Seis e nove anos.
- Não tem mais ninguém morando com elas?
- Hoje elas vão embora pra Paraíba. A avó veio buscar.
- Elas não tem pai?
- Tem não. Faz mais de mês que a mãe largou as meninas. Ontem mesmo, fui eu que coloquei as roupas delas nas sacolas pra levar embora.
- Que triste isso.
- Enquanto elas viam televisão na minha casa a mais nova disse pro meu marido que queria encontrar a mãe antes da avó chegar. E que queria ganhar um ovo de páscoa da mãe. Meu marido mandou eu comprar um ovo prá elas antes de voltar pra casa. Tomara que dê tempo de entregar.
- Você não quer passar na minha frente? São só esses dois ovos, não é?
- Nossa moça, vou passar sim. A mãe eu não consigo trazer de volta, mas o ovo de páscoa eu posso dar. Aí elas podem ir comendo no caminho pro norte.
- Pode passar então.
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A mulher segurava os dois ovos em uma mão e as moedas na outra mão. Fiquei sem graça quando ela esbarrou desajeitada nas minhas caixas de bombom empilhadas no balcão do caixa.
- Desculpa moça.... eu fico pensando nas meninas.... na cara delas quando eu der o ovo... – imaginou a mulher com os olhos fundos e um sorriso raso.
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Rente à calçada um ônibus dá a partida. Destino: Olaria do Nilo.
- Ô motorista! Eu vou nesse aí! – gritou a mulher apressando o homem à sua frente que terminava de pagar as compras.
- São R$ 3,80 – disse o rapaz do caixa para a mulher.
- Moço, eu tenho R$ 3,50. Eu pego ônibus aqui todo dia. Eu pago o que faltar amanhã sem falta. É que eu preciso muito levar esses ovos.
- Pode deixar que eu pago – intervi sem pensar.
- Não moça, eu passo aqui todo o dia. Amanhã eu trago pra ele.
- Deixa que eu pago – repeti – e cobra mais esses dois aqui, por favor – disse apontando para os chocolates com embrulhos da Hello Kitty.
- Deus te abençoe, moça. Deus te abençoe.
- Esses vêm com brinde. As crianças gostam dessas coisas. Olha, o ônibus vai sair.
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Afobada, a mulher ensacou os quatro ovos e seguiu apressada em direção ao motorista que a esperava. Dentro do ônibus, antes de se sentar, abriu a janela e acenou:
- Boa Páscoa, dona! Boa Páscoa!
- Pra você também – respondi baixinho.
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imagem: Woman With Amphora, Henri Matisse
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