05 setembro 2010

humanidade

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Eu sou da casa 102. A Lourdes é da casa 56. A Vera, da casa 73. Hoje é o primeiro dia do feriadão de 7 de setembro. Nossa rua que já é uma travessa muito tranquila, está prá lá de sossegada.
Consersávamos sobre as mudanças no bairro, sobre a torre que vai subir às nossas costas, sobre o artista bonitão que mora na casa em frente, sobre a inquilina barulhenta que se mudou. Um papo de vizinhas sob sol intenso, próximo ao meio dia. São Paulo está cruelmente seca, rogando por chuva.
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De carro, a moradora da casa branca passa acenando. Ela vai para um casamento. Na calçada de cima, vejo o Casé, meu colega de faculdade, passeando com a filha. A conversa entre nós três segue sem preocupação.
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- A gente podia fazer uma reunião para ver se contrata um guardinha prá rua, né?
- Esse assunto é complicado. Na teoria todo mundo é a favor, mas na hora que mexe no bolso, aí o pessoal dá prá trás.
- E tem que pensar na guarita.
- No banheiro da guarita.
- Na comida e no café do guardinha.
- Ou melhor, dos guardinhas, porque vai ter que ser dois turnos...
- Nina, que cara é essa?
- Nossa, acho que tem uma pessoa passando mal - murmurei apontando para a esquina.
- Ai meu Deus, o cara tá convulsionando!
- Liga pro Samu. Alguém tá com o celular aí?
- O meu tá em casa.
- O meu também.
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Foi aí que a Vera entrou correndo na casa dela, que era a mais perto de onde conversávamos e saiu com o i-phone - gente, que número é o Samu? Discava e andava em passos largos em direção da pessoa caída. Eu e Lourdes fomos atrás.
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Quando nos aproximamos, o homem ainda tinha espasmos. Caíra de uma forma que a blusa cobrira seu rosto. Era um morador de rua. Olhei para a Lourdes, sem saber como agir. Fiquei sem ação justamente porque era uma pessoa pobre, com pele, cabelos e roupas sujas que exalavam urina. O preconceito bloqueou a minha iniciativa em tentar ajudar uma pessoa.
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Enquanto eu mantinha uma distância de pouco mais de um metro do homem no chão, Vera agachou-se ao lado dele, pressionando o celular entre a orelha e o ombro na insistência de contatar um socorro: ei, o que aconteceu com você? Com cuidado, ela descobriu o rosto desacordado. Usando as duas mãos, suspendeu ligeiramente a cabeça dele, pendurada para fora da guia e tentou reanimá-lo.
- Vou buscar uma água - saiu correndo Lourdes para sua casa.
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E eu, o que poderia fazer? Aquela cena era muito para mim. A espuma branca escorrendo pela boca do homem, me fez concluir que era algo grave. Lembrei do João caído no chão do meu quarto. Dos longos minutos que fiquei esperando pelo socorro, sem saber que movimento fazer, que palavra dizer, que rumo tomar. O sentimento onipresente é a da impotência, da percepção pobre que você é uma pessoa limitada - ora pela falta de vivência, ora pelo preconceito.
- Eu vou pegar o carro e chamar os bombeiros - prontificou-se Lourdes.
- Gente, desculpe, mas eu não dou conta disso - e saí caminhando em direção a minha casa.
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Dentro de casa, lembro ter dado três ou quatro respiradas fortes. Não posso ser tão covarde a ponto de dar as costas para isso. Talvez eu não consiga fazer o que a Vera está fazendo por um desconhecido, mas fechar os olhos porque o homem é um mendigo?
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Peguei o celular, liguei para 190, depois para 192, falei para o Felipe que estava em casa: fica aqui só um pouco porque tem um homem passando mal e a mamãe vai esperar a ambulância chegar. Depois eu te explico tudo. Dei o recado e voltei para a esquina.
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Vera ainda carregava a cabeça do homem, pacientemente, como que lhe dissesse pelas mãos que ele seria socorrido. Minutos depois, Lourdes chegou com os bombeiros. Cancelamos os chamados do Samu e da polícia.
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- Vocês conhecem ele? - perguntou um dos três bombeiros.
- Não.
- Vocês viram como ele caiu?
- Não, a gente só viu depois que ele caiu.
- Ele bateu a cabeça?
- Não sabemos.
- Parece ser algo neurológico. Não tem cheiro de bebida.
- Aquele vigia disse que ele sempre anda por aqui e que ele não bebe.
- Bom, a gente vai tratar como se tivesse um trauma. Vamos erguer e vocês empurram a maca. No três, ok?... Um, dois, três.

Lourdes e eu ajudamos a colocá-lo na maca. Foi o que eu pude fazer.
- Vocês vão levar ele para onde? - preocupou-se Vera.
- Hospital da Lapa. É o mais perto.
- O mais perto não é o Panamericano? - indagou.
- O Panamericano não aceita resgate assim. O cara é indigente. Tem que ser hospital público.
- E depois, o que acontece com ele?
- Alguém da família tem que ir buscar.
- Mas acho que ele não tem família em condições...
- Isso já não é mais problema nosso. A assistente social do hospital é que vê essas coisas.
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Voltamos para nossas casas em silêncio. Por um instante, chorei de vergonha. Talvez, sem a disponibilidade delas, não teria ajudado o homem. Passei o resto do dia pensando em como somos rasos diante do preconceito. À noite, mandei uma mensagem para a Vera agradecendo pelo ato tão natural, nobre e óbvio dela.
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2 comentários:

Marcos disse...

Oi Ni,
Me senti tocado com o seu relato porque, na verdade, faço isso quase que diariamente: nos faróis, no posto de saúde, onde trabalho... porém na maioria das vezes sem me dar conta. Quando a gente percebe esses nossos preconceitos e essas nossas limitações é mesmo muito doloroso, mas é assim que a gente aprende, cresce, evolui. Não é?!
Beijo grande no coração.
Te amo muito!

nina disse...

oi Marcos,
Tentamos acreditar que somos pessoas totalmente do bem, conscientes das diferenças. A gente até consegue condenar quem demonstre preconceito sobre algo ou alguém.
Quando a merda partiu de mim e dei conta que fui omissa por causa do preconceito, foi uma decepção grande.
Sinceramente, que esse tapa na cara, seja revertido em aprendizado.
bjs
ni